E se fosse eu

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E se fosse eu

Por Aleluia Heringer

Frederick Douglass nasceu escravizado em Maryland - EUA. Desde criança percebeu que as crianças brancas podiam contar suas idades e irem para a escola. Não conseguia entender por que ele era privado dos mesmos privilégios e nem ao menos podia perguntar. Por estimativa, por algo que ouviu, acreditava ter nascido em 1818. Conseguiu fugir na terceira tentativa. Ainda seriam necessários mais 27 anos até a assinatura da abolição da escravidão nos Estados Unidos, em 1865, e mais de cem anos de espera e de restrições aos plenos direitos.

Capa do livro “Autobiografia de um escravo”, Frederick Douglass. Imagem: reprodução.

Quando terminei de ler a autobiografia de Frederick, comentei alguns trechos com pessoas que estavam próximas. As experiências narradas, em primeira pessoa, têm vida, sentimento e a dor daquele que viveu, daí serem bem impactantes. Todos que ouviram concordaram: que absurdo! Contudo, um desses interlocutores, lançou uma pergunta: já pararam para pensar que é bem provável que, se vivêssemos nesse tempo, nós poderíamos ser um desses escravizadores e consideraríamos tudo dentro da normalidade?

De fato, é bem possível! A consciência contrária à escravidão é recente e só foi possível pois muitos daqueles feitos escravos, inconformados, resistiram e lutaram pela liberdade. Junto a eles, foi preciso também a coragem dos abolicionistas, que manifestavam de diversas formas serem contrários àquele estado de coisas. Para esses, também havia o risco de denúncia e terríveis consequências, afinal, se contrapor ao sistema escravagista era confrontar o pacto selado entre as instituições jurídicas, políticas, religiosas e o miúdo da vida cotidiana.

Se hoje nos causam estranhamento os relatos de Frederick, é graças aos que, naquele presente hostil, sonharam e anunciaram um futuro mais equânime e justo. O grande valor e força dessas pessoas, escravizados e abolicionistas, advém do fato de estranharem o sistema, quando tudo apontava para a sua naturalização e normalização. Hoje, apesar da abolição, o racismo persiste e continua restringindo, por meio dos seus inúmeros mecanismos, o acesso à cidadania plena aos jovens negros e pobres. A história de Frederick não acabou, assim como não acabou a necessidade de identificarmos e denunciarmos esses mesmos padrões de exploração em nome de uma superioridade ou estabilidade seja ela de qual campo vier.

O que do presente será contado no futuro e que causará igual espanto? Quem somos nós na perpetuação de sistemas que roubam a vida, a liberdade e a integridade física, daqueles seres que querem a vida, a liberdade e o próprio bem-estar? Quais leis, práticas e costumes, naturalizam a dor, o sofrimento? Quais políticas limitam o acesso a uma cidadania plena a todos e todas? Quais práticas, modo de viver e consumir que favorecem a destruição dos ecossistemas? São muitas e muitas perguntas. A história continua.

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